Artigo de José Serra, publicado hoje no Estadão
No  próximo dia 13 de setembro, fará 11 anos a Emenda Constitucional  29  (EC 29), que criou vinculações orçamentárias para a Saúde. Na Câmara,  o  projeto passara com facilidade, apoiado por todos; entre os  senadores,  o percurso foi difícil, dada a pressão contrária de muitos   governadores. A emenda deu certo: de lá para cá, os recursos reais da   Saúde aumentaram em termos absolutos e como fatia do PIB, embora isso se   deva mais a estados e municípios do que ao governo federal.  A   participação do Ministério da Saúde nos gastos do setor caiu de 53% para   47% no período, aumentando os encargos dos governos estaduais e   municipais.
A EC 29 previa que  se votasse, até 2004, uma lei complementar que a  regulamentasse, mas o  governo Lula evitou o assunto, precisamente para  não aumentar sua fatia  nas despesas do setor.  Teve, nisso, a parceria  de alguns  governadores. Agora, o Congresso diz que vai votá-la até o fim  deste  mês. Por que foi feita a EC-29? 
Para  o bem ou para o mal, a Constituição de 1988 acabou ampliando e   reforçando as vinculações orçamentárias diretas e indiretas , via   isonomias salariais, por exemplo. Mas a Saúde ficou de fora e, num mundo   orçamentário rígido, virou colchão amortecedor de crises e apertos   fiscais. Tudo piorou quando, já no governo Collor, o Finsocial, que  abastecia a  Saúde de recursos, foi derrubado pelo STF, abrindo uma  tremenda crise,  só atenuada por socorro do FAT. Na época de Itamar  Franco, a fatia da  Saúde nas receitas da previdência foi extinta junto  com o INAMPS, de  quem o Ministério da Saúde recebeu as unidades  hospitalares e  ambulatoriais. 
Eu era ministro do Planejamento  quando o titular da Saúde, Adib  Jatene, tomou a iniciativa da criação  da CPMF vinculada ao setor, mas já  não estava lá quando ele conseguiu  aprová-la em outubro de 1996. Adverti, então, que, sendo a receita  prevista com a CPMF menor do que as  despesas federais com Saúde, o  aumento dos recursos da área não era  garantido, pois outras receitas  que financiavam o ministério poderiam  ser redirecionadas para outros  gastos sociais. E isso aconteceu. 
Quando, no início de 1998, o  presidente Fernando Henrique convidou-me  para assumir o Ministério da  Saúde, acertamos promover algum mecanismo  que defendesse o setor. Por  isso, no ano seguinte, fizemos um  substitutivo a um projeto do deputado  Carlos Mosconi, economizando,  assim, prazos de tramitação. A fim de  evitar as incertezas de possíveis  reformas tributárias, preferimos  vincular recursos ao índice do PIB  nominal — a cada ano, o orçamento  federal para a Saúde deveria ser  reajustado,  no mínimo,  pela variação  desse índice do ano anterior.  Para os estados e municípios, a  vinculação fez-se às receitas líquidas:  12% e 15%, respectivamente, a  serem atingidos em cinco anos. 
Diga-se que, a partir da EC 29, a  CPMF e a Saúde divorciaram-se. A  obrigação do governo federal passou a  ser a de cobrir o financiamento  mínimo do setor, independentemente das  origens dos recursos. Por isso, o  sumiço da CPMF em 2008 não retirou  recursos da Saúde. No final de 2007,  a fim de vencer  a oposição do  Senado à renovação do tributo, o governo  Lula acenou, na undécima hora,  com a possibilidade de destinar a  receita da CPMF à Saúde. Não deu  certo. 
Se fosse verdadeira a intenção  de reforçar o setor, em vez tentar  renovar a CPMF, o governo Lula  poderia ter aprovado rapidamente o  projeto de lei complementar já  citado, contendo um tributo só da Saúde.  Ou poderia ter destinado a ela  parte do Imposto sobre Operações  Financeiras, cujas alíquotas foram  aumentadas, a fim de compensar a  perda da CPMF. A receita do IOF subiu  quatro vezes de 2007 até 2011,  quando será de R$ 30 bilhões. Um terço  disso teria elevado bastante os  recursos federais para a Saúde. Mas  essa não foi a prioridade de Lula e  do PT, nem antes nem depois. Desde  2002, as despesas federais na área  cresceram abaixo das receitas  correntes. 
O projeto de lei que está para  ser votado na Câmara de Deputados tem  várias coisas positivas, entre  elas, a que impede os governos de  contabilizarem no item Saúde gastos  de segurança, alimentação, lixo,  asfalto, etc. Devido esse expediente  fraudulento, metade dos estados,  hoje, não cumpre a EC-29. Mas dois  dispositivos financeiros merecem  reparos. O projeto retira da base de  cálculo da despesa mínima estadual  para a Saúde os recursos do FUNDEB,  da Educação. Isso cortaria em R$ 5  bilhões os gastos obrigatórios dos  estados no setor! Paralelamente,  cria-se a Contribuição Social para a  Saúde, uma CPMF de 0,1%, que  renderia uns 14 bilhões de reais/ano. Mas,  desse total, 20% seriam  descontados por conta da DRU. Assim, metade da  CSS serviria aos tesouros  nacional e estaduais, a pretexto da Saúde!
Note-se  que, desde 2002, a carga tributária no Brasil aumentou em  torno de  três pontos percentuais do PIB; o gasto federal aumentou em 80%  reais.  Ao longo de 2011, a receita tributária federal cresceu três  vezes mais  do que o PIB.  Será que as distorções de prioridades, o  descaso sobre  eficiência e redução de custos e os desperdícios e desvios  têm sempre  de ser compensados com aumento ainda maior de tributos? A Saúde precisa,  sim, de mais recursos federais, e eles tinham de ter  saído e devem  sair das receitas existentes. Dentro do próprio setor há  um mundo de  possibilidades de redefinição de custos e prioridades,  questões que  saíram da sua agenda desde 2003. 
E o que dizer sobre a qualidade  dos gastos federais? Dois pequenos  exemplos: cerca de R$ 700 milhões  poderiam ser destinados à Saúde com o  simples cancelamento do projeto  executivo do trem-bala, essa grande  alucinação ferroviária; outro tanto  poderia ser obtido cortando despesas  com boa parte das ONGs e festas  municipais, no âmbito do Turismo, item  escabroso em desvio de  recursos.E pode-se permitir, sim, que iguais  montantes virem emendas  para a Saúde, de forma criteriosa e controlada.  Em suma, trata-se de  governar com prioridades claras, determinação e, é  claro!, com rumos,  sabendo-se o que ser quer.
Por/ Amenilson Cavalcante 
 
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